Apresentação do livro «1º Visconde de Santarém (1757-1818): um estudo biográfico» pela Prof.ª Doutora Ana Canas Delgado Martins (Grémio Literário, 9-6-2021)

1o. Visconde de Santarém (1757-1818): um estudo biográfico, de Daniel Protásio (1)

Agradeço o convite do Doutor Daniel Protásio para aqui estar convosco, neste espaço singular de cultura e sociabilidade, o Grémio Literário. Só recentemente tive o prazer de conhecer o autor, também como colega do Centro de História da Universidade de Lisboa, no contexto de um júri de mestrado relacionado com arquivos dos Lobato, pai e quatro filhos, servidores de D. João VI, da autoria de Margarida Lobato, uma descendente da família com a qual o protagonista deste estudo biográfico se cruzou, nomeadamente em termos de parentesco. Farei apenas breves observações a propósito do livro, cuja estrutura e conteúdos me inibo de reproduzir, para o desfrutarem por vós.
Pouco mais de 200 anos passados sobre a revolução de 1820 em Portugal, é um bom momento para se reconstituírem percursos desta época afastada mas cheia de consequências na vida dos portugueses do séc. XX e até dos de hoje.
Percursos não só dos que a impulsionaram e protagonizaram, em sentidos frequentemente contraditórios, mas também daqueles que pertenciam aos altos quadros administrativos e de influência do regime anterior, do antigo regime. Estes últimos quadros, em circunstâncias diversas, não deixaram de estar presentes no alteroso regime constitucional que lhe foi sucedendo, em anos de guerra civil larvar ou aberta e de mudança profunda da sociedade portuguesa do séc. XIX.
Alguns, se já não testemunharam esta época de visível rutura, tiveram nela continuidade familiar, de fidelidades e, porventura, de pensamento, ainda que renovado.
Terá sido o caso de João Diogo de Barros Leitão e Carvalhosa, titulado 1o. Visconde de Santarém e que viveu 61 anos, entre 1757 e 1818.
Despertaram-me curiosidade as referências do autor ao facto do biografado ter reunido um gabinete de física, mecânica, astronomia, peças de museu, pinturas, desenho, estamparia, etc. (entre muitos “ornatos supérfluos” como estátuas e móveis “inteiramente desnecessários”, referidos no inventário orfanológico) pelo que poderão dizer da sua personalidade e, talvez, do ambiente cultural da família, em especial do 2o. Visconde de Santarém, seu filho, apesar de tudo mais conhecido e um motivo reforçado para ler o livro.
Idêntico interesse me suscitou a atividade de inspetor das Obras da Ajuda e de guarda-joias da Casa Real, entre outros cargos exercidos por João Diogo de Barros Leitão e Carvalhosa, interesse quiçá aguçado pela expectativa criada com a recém-anunciada conclusão da Ala Poente do Palácio da Ajuda e a abertura, em novembro próximo, do Museu do Tesouro Real, expondo símbolos da soberania portuguesa, não exclusivos de um regime, como creio ter bem referido o Presidente da República.
Maior curiosidade ainda ficou da abordagem aos dois retratos que o autor refere e que serão apresentados a seguir pela Doutora Patricia Telles.
Também registei particularmente os poucos bens de raiz que deixou para sustento familiar, já sem as fontes de rendimento que o exercício de destacadas funções administrativas providenciava.

Registei-o porque tais características de escassez de recursos produtivos na sociedade portuguesa, mesmo em estratos diferenciados, foram e talvez continuem a ser mais comuns entre nós do que habitualmente consideramos, em especial se compararmos com outras sociedades europeias. Características que não têm de ser uma fatalidade.
Mas o que hoje assinalo deste estudo biográfico é o facto dos últimos onze anos da vida do 1o. Visconde de Santarém coincidirem com um dos períodos mais difíceis da história portuguesa, marcados inicialmente pelas invasões francesas e pela partida da família real e da corte portuguesas para o Brasil, em 29 de novembro de 1807.
João Diogo de Barros Leitão e Carvalhosa não acompanhou esta inédita transferência da sede do poder político de um governo europeu para os trópicos, em tempos árduos, prenunciados anos antes em Portugal por acontecimentos de natureza e peso variáveis.
Um deles, em maio de 1803, envolveu João Diogo de Barros, enquanto guarda-roupa do Príncipe Regente D. João e o embaixador francês em Lisboa, o general Jean Lannes, em insolente pressão napoleónica ocorrida durante uma audiência pública, episódio recordado no livro. Este conturbado período que João Diogo de Barros, ao contrário de outros, terá atravessado dignamente, tendo até sido ameaçado pelo ocupante Junot, como indicia o autor (a partir do Elogio Fúnebre) é, talvez, dos menos amados da nossa História. Vasco Pulido Valente escreveu a propósito, em 2007, em afirmação retomada em conversas com o jornalista João Céu e Silva, entre 2018 e 2020: “estranhamente, [este período] embora apaixonasse a historiografia do século XIX, não interessou (com uma ou outra exceção) a do século XX”. (2) Desinteresse que, apesar de tudo, estará a ser colmatado.
Em grande parte, tal desamor poderá ter sido devido a alguma incompreensão mais contemporânea quanto aos mecanismos e aos efeitos do difícil equilíbrio que o governo do Regente D. João tentou manter, entre a França e a Inglaterra, no âmbito de uma muito pensada política externa de duplicidade, nem sempre bem sucedida.
Relembrem-se, por outro lado, as consequências devastadoras das invasões napoleónicas, inicialmente sem ordem régia de resistência e com algum colaboracionismo de aristocratas e da magistratura, contrariado meses depois, a partir de julho de 1808, nomeadamente por populares desapossados de meios de sobrevivência.
Também a abolição do monopólio do comércio entre o Brasil e Portugal, em março de 1808, condicionada pela Grã-Bretanha e, sobretudo, o Tratado de Comércio e Navegação que Portugal se viu obrigado a assinar em 1810 com a sua aliada indispensável naquela conjuntura, prejudicaram fortemente qualquer tentativa da economia portuguesa mitigar o enorme esforço de guerra contra os exércitos de Napoleão e o custo das expedições militares nas fronteiras do Brasil.
A alongada estadia no Rio de Janeiro do futuro rei D. João VI, embora na sequência de uma decisão política acertada, visando preservar a soberania portuguesa, acabou por aprofundar, com o arrastar do tempo, o sentimento de desvalorização e de orfandade dos que ficaram em Portugal (ou no Reino para usar uma expressão da época).
Sabendo-se que João Diogo de Barros terá ficado naturalmente desgostoso (“absorto em pranto”) por não ter acompanhado a Corte até ao Brasil, desconhece-se qual terá sido, ao longo dos anos e a este respeito, o sentir íntimo do fiel servidor de D. João, agora estudado.

Desde cedo, os Governadores do Reino em Lisboa, representando a autoridade régia, transmitiram ao Príncipe Regente, depois rei, a excessiva limitação da autoridade que detinham, referindo, por exemplo, que era ainda menor que a dos Governadores da Índia. (3) A ausência de D. João tornou-se cada vez mais difícil de aceitar, em particular após a Paz Geral na Europa em 1814 e o Congresso de Viena que a estabilizou em 1815.
Prolongava-se a presença militar britânica nas patentes superiores do Exército, de cuja
reorganização, em conjunto com oficiais portugueses como D. Miguel Pereira Forjaz,
simultaneamente governador do Reino e secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e da Marinha, William Carr Beresford tinha sido encarregue em fevereiro de 1809.
No estudo de Daniel Protásio, apercebemo-nos que, ainda em 1815, o oficial inglês nomeado marechal do Exército de Portugal era considerado por João Diogo de Barros indispensável para o comandar e subordinar e que entre ambos, Forjaz e outras individualidades da estrutura governativa de então, se tinham desenvolvido laços de entendimento pelo menos de cariz político.
O autor assinala este relacionamento do 1o. Visconde de Santarém com aqueles que considera os “principais instigadores políticos do processo Gomes Freire de Andrade”.
De facto, o fragilizado Conselho de Governadores em Lisboa, num procedimento de contornos ainda nebulosos, puniu duramente os designados conspiradores de 1817 e, de modo humilhante, por enforcamento, incluindo o mais prestigiado, o Tenente-General Gomes Freire de Andrade que pedira para ser fuzilado.
O 1o Visconde de Santarém parece ter sido um entre os que, consultados por Beresford acerca de denúncias desta conspiração, sugeriram que o governo fosse delas informado. Ignora-se se influenciou o desfecho: aparentemente não o terá feito.
Neste final de 1817 e em paralelo, os governadores do Reino tentavam, pouco convictos, manter a esperança do regresso do rei.
No entanto, muitos sentiam-se abandonados pelo seu “Brazilian King”, na expressão de Ward, representante britânico em Portugal e que, em dezembro de 1817, veiculava igualmente rumores de que um grupo de pessoas descontentes via a família Cadaval como possível substituto da família real. (4)

O 1o. Visconde de Santarém morreu pouco tempo depois, em 17 de fevereiro de 1818. Não chegou a presenciar o que foi, em 1820, o início da Revolução Constitucional nem assistiu, em julho de 1821, ao desembarque de D. João VI em Lisboa.
Mas participou dos acontecimentos que, em especial a partir do fim de 1807 e muito provavelmente sem disso ter consciência, geraram uma radical transformação da sociedade portuguesa. Também por esta razão, vos convido a lerem o estudo biográfico de Daniel Protásio.

Lisboa, Grémio Literário, 9 de junho de 2021
Ana Canas Delgado Martins
(CH ULisboa e AHU)

Notas

(1) 1 Daniel Protásio, 1º. Visconde de Santarém (1757-1818): um estudo biográfico. Lisboa: Chiado Books, 2020.

(2) João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente. Lisboa: Contraponto Editores, 2021, p. 57.

(3) Ana Canas Delgado Martins, Governação e Arquivos: D. João VI no Brasil. Lisboa: IAN/TT, 2007, p. 65.
(4) Martins, p. 109-110.

Deixe um comentário