Testamento do 2º Visconde de Santarém (1849; 1852)

Pela primeira vez, é transcrito e colocado à disposição do público o texto do testamento do 2º visconde de Santarém (1791-1856). Já em 1909 Jordão de Freitas, bibliotecário da biblioteca da Ajuda, invocava este documento na sua obra de referência O 2º Visconde de Santarém e os seus Atlas Geográficos, a p. 19. A razão objectiva para esta omissão, na numerosa bibliografia que lhe foi dedicada, durante todo o século XX, é clara: é mencionada a «filha natural» do 1º visconde de Santarém, madame Pitoin, Henriqueta de Barros e enfatizado o seu papel essencial na sobrevivência económica do irmão, o visconde, nos seus primeiros tempos em Paris. O testador dedica mesmo o artigo quinto a pedir aos familiares, esposa e primogénito (entre outros), que caso a irmã passe a Portugal, que a acolham com toda a benevolência

A leitura deste documento evidencia, pela primeira vez, a faceta íntima de um homem cuja relação com a mortalidade e finitude é claramente explicitada. A preservação dos bens domésticos, dos papéis e documentos de construção da obra, o espólio dos exemplares impressos, da terceira livraria (constituída em Paris, desde 1834), são alguns dos temas que aborda no mais íntimo dos textos que se lhe conhecem. A espiritualidade, a invocação de Deus, dos que lhe são queridos, da posteridade, revelam-nos um outro 2º visconde de Santarém.

Biblioteca Nacional da Ajuda, cota 54-X-5, nº 152

«Não havendo inconveniente

Das Necessidades, a 2 de Junho

Diz João de Barros Saldanha da Gama, que a bem de seu direito precisa que, pela Secretaria dos Negócios Estrangeiros, se lhe passe por certidão o testamento com que em Paris faleceu seu pai o visconde de Santarém; e como se não possa passar sem despacho de Vossa Majestade, por isso

                                               Pede a Vossa Majestade, que se sirva assim mandar

Lisboa, 3 de Junho de 1857

João de Barros Saldanha da Gama/ 1 v.

Examinando-se nesta Secretaria de Estado a correspondência oficial do ministro de Sua Majestade Fidelíssima na corte de Paris, nela se acha o ofício número cinco de vinte e um dia de Janeiro último com a cópia do testamento com que faleceu naquela corte o visconde de Santarém, sendo o teor do mesmo testamento o seguinte.

Testamento do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor visconde de Santarém

Disposições testamentárias

Sendo a vida entre as cousas deste mundo a mais incerta de todas, é um dever de homem filósofo e honrado prevenir todas as complicações que possam resultar da sua morte e poupar às pessoas que estimou desgostos e contratempos, que se poderão seguir do seu silêncio ou egoísmo e tanto mais necessário e prudente é este arbítrio, quando é devastadora e rápida a horrível epidemia reinante [cólera]. Por estes respeitos e por muitos outros de igual monta e importância, determinei-me a fazer este testamento, que vai todo escrito pelo meu punho e em perfeito juízo. Sendo consideráveis/2 f. e necessárias as disposições que tenho a fazer, não me foi possível escrevê-las todas e determiná-las no corpo dele. Serão, pois, escritas em codicilos subsequentes, que quero que, na conformidade das leis, tenham a mesma validade.

Um dos desgostos que mais profundamente tem minado a minha existência é que as revoluções e desastres domésticos de toda a espécie me privem de deixar felizes as pessoas que durante a minha vida me deram provas de verdadeira afeição. Mas se alguma cousa pode atenuar este desgosto é a sinceridade da minha consciência de ter preferido a pobreza e a mediocridade a aproveitar-me das infinitas ocasiões que tive de enriquecer em todo o longo tempo que preenchi os meus eminentes cargos e empregos no meu país. Tive sempre por melhor probidade do que a riqueza mal adquirida por meios ilícitos nos cargos públicos. Posto que em tempos em que o interesse domina tudo, espero, todavia, que os meus concidadãos e a Nação inteira tiram por memória da fidelidade e probidade com que/2 v. o servi toda a consideração pela pessoa do meu filho João de Barros; e pela execução de algumas das disposições deste testamento e dos desejos que nele manifesto.

Artigo Primeiro

Declaro que todos os móveis, louça, prata e objectos que existem nos quartos e salão desta casa no primeiro pavimento desde a porta da entrada, bem como nos quartos do segundo andar deste hotel, bem como roupas e painéis que existem em uns e outros dos quartos citados pertençam a minha irmã Henriqueta de Barros, actualmente madame Pitoin, filha natural de meu pai. Se alguma cousa que me pertencer, achando-se nestes quartos na ocasião do meu falecimento, lhe deixo em plena propriedade.

Artigo Segundo

Todos os móveis, roupas e mais objectos que se acham nos dois quartos do primeiro andar desta casa, onde habita Mr. Miller, declaro que lhe pertencem, pois é da sua propriedade. /3 f.

Artigo Terceiro

Declaro que os livros e exemplares em folha {da} minha obra que se acham no quarto do segundo andar à direita da entrada, me pertencem. Os folhetos são de diferentes grandezas e a obra de que faço menção, se intitula Recherches sur la Priorité des Découvertes de la còte occidentale de l’Áfrique au-delá du cap Bojador [Paris, mil oitocentos e quarenta e dois.]

Artigo Quarto

Declaro que todos os móveis e mais objectos que existem actualmente no quarto onde escrevo e tenho a livraria e o em que durmo me pertencem.

Artigo Quinto

Recomendo e ordeno ao meu filho primogénito João de Barros de Sousa e Carvalhosa que tenha sempre a maior consideração por sua tia Henriqueta de Barros, actualmente madame Pitoin e que no caso que ___ algum tempo queira ir viver em Portugal a acolha na sua companhia e que peço igualmente e recomendo à viscondessa. Os sacrifícios que ela fez por mim nos primeiros anos da minha/3 v residência em França e as suas boas qualidades são títulos tais que não hesito que toda a minha família os terá por {} sua na maior contemplação. Recomendo-a também a meu irmão Inácio, que já lhe tem dado tantas provas de amizade, que se concerte com minha irmã Dona Maria Joana e com seu marido e meu cunhado João Paes de Faria para a socorrerem regularmente e não a deixarem sem meios. Espero, pois, da honra deles e peço decoro mesmo da família, que hajam de a não abandonar.

Artigo Sexto

Nomeio meu filho primogénito João de Barros todos os prazos de livre nomeação que possuo e entre estes a quinta do Cangalheiro e suas anexas, junto da quinta do Cabeço, no distrito de Sacavém.

Artigo Sétimo

Determino que um exemplar completo das minhas obras, acompanhado do Grande Atlas dos Monumentos Geográficos encadernado seja mandado guardar na Livraria da do Arquivo Real da Torre do Tombo em Lisboa. / 4 f.

Artigo Oitavo

Deixo a minha livraria à Academia Real das Ciências de Lisboa, com a condição de que ela seja classificada à parte e se conserve inteira com o meu nome, do mesmo modo que em França se conservam as colecções que pertenceram a Colbert, Sully e outros indivíduos.

Artigo Nono

Declaro que tenho em depósito em casa do livreiro de Paris Aillaud toda a edição da minha obra intitulada = Quadro Elementar das Relações Diplomáticas e igualmente os exemplares do tomo primeiro do Corpo Diplomático Português, ou Colecção de Tratados e todos os exemplares da Memória sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa Ocidental de África no [sic] sul do Cabo Bojador. As duas primeira obras foram tiradas, o Quadro a mil exemplares e o Corpo Diplomático, a quinhentos. [D]As Memórias ainda restam os exemplares das constantes das contas dadas por Mr. Aillaud que se encontram nos maços da gaveta primeira da minha Cartonnière neste/ 4 v gabinete em que trabalho. Além destas obras, tenho ali em depósito igualmente setenta exemplares das minhas Recherches sur les Voyages de Vespuce. Além destas tenho no mesmo depósito mais de cem exemplares do Grande Atlas e [sic] Monumentos Geográficos, completos. Algumas das folhas deste Atlas excedem o número de cento e cinquenta e de outras existem ainda duzentas, o que tudo se deverá verificar quando houver de se lhe tomar conta. A importância das obras que tenho neste depósito calculo-a aproximadamente pelos preços das vendas em cinquenta e seis mil francos de valor em moedas francesas. Em Casa do livreiro Renouard de Paris tenho igualmente alguns exemplares da minha obra intitulada Recherches sur la Priorité de la Découverte des Pays situés sur la côte occidentale de l’Áfrique (Paris, mil oitocentos e quarenta e dois). Este livreiro ainda me não deu conta da venda dos ditos exemplares dos quais me passou recib, que se encontrará nos maços acima citados. Em Casa de Madame Veuve Gilbert et Companhia [sic], rue Jacob número trinta e oito, tenho/ 5 f. igualmente seis exemplares da mesma obra, como consta do recibo do seu recibo [sic]de dezoito de Maio de mil oitocentos e quarenta e sete. Deve exigir-se dele o valor em moeda ou a restituição. Esta obra vende-se a oito francos para o autor. O livreiro alemão Franck rue Richelieu deve-me de diferentes exemplares do Atlas colorido vendidos à razão de trezentos francos e de outras obras que constam dos recibos dos ditos livros e que existem entre os meus papéis, a quantia de setecentos e vinte francos e dez centésimos até hoje quinze de Junho de mil oitocentos e quarenta e nove, de cuja soma se devem deduzir algumas parcelas de livros que ele me vendeu, os quais não importam, segundo me recordo, em mais de cento e vinte francos.

Artigo Décimo

Quanto à impressão das minhas obras, declaro que fiz ajuste com os impressores Maulde e Renou em virtude do qual se obrigaram a imprimir a minha obra intitulada = Essai sur l’Histoire de la Cosmographie et de la Cartographie, para/5 v. servir de texto ao Atlas, mediante consignações de quatro em quatro meses e outros arranjos que constam do contrato escrito que se encontra nos meus papéis. Declaro outrossim que existem ainda poder dos impressores perto de quatrocentos exemplares do tomo primeiro desta obra. E no mesmo depósito em poder deles existe também um grande número de exemplares das minhas = Recherches historiques, geógraphiques sur Vespuce et ses Voyages. O segundo volume desta importante obra [Éssai…], não só pelo interesse científico delas, mas ainda pela glória que dá sua publicação, resulta para a Nação Portuguesa está já mais de metade impresso e o resto do manuscrito quase pronto para a impressão. Recomendo pois a Mr. Miller que faça imprimir o resto no caso de a morte de privar de terminar esta publicação.

Espero que o governo do meu país por glória dele mandará pagar o que se me está devendo da subvenção votada pelas cortes para esta e outras publicações, e/ 6 f. e que destas somas devidas não só se paguem os impressores do que resto [sic] a dever do primeiro volume, mas também da importância da impressão do segundo.

Se Deus me cortar o fio da vida, ficará esta obra assim mesmo imperfeita, posto que deixo todos os materiais prontos para os outros três volumes, que deviam completar esta obra conforme as divisões sistemáticas estabelecidas na introdução do tomo primeiro.

Artigo décimo primeiro

Declaro que em vinte e sete de Agosto de mil oitocentos e quarenta e sete fiz um contrato com o gravador alemão Schwaerlé para a gravura do grande mapamundo do décimo quinto século de Fra-Mauro para este monumento fazer parte do meu Atlas. Quatro partes estão já gravadas, mas nenhuma ainda tirada em exemplares. O tempo necessário para gravar esta carta, a maior de todas as da Idade Média, os atrasos constantes em que tem andado a subvenção votada para a impressão das minhas obras pelo orçamento, em circunstâncias políticas/6 v. tem retardado a publicação deste precioso monumento, tão interessante para a glória dos descobrimentos portugueses.

Recomendo, pois, que no caso de vir a falecer, que tratem de fazer concluir a publicação do mesmo mapamundi e quando este meu desejo se não possa cumprir, dever-se-á exigir do dito gravador o magnífico original que ele tem em seu poder e que eu lhe confiei, como consta do recibo que ele me passou em vinte e um de Agosto do dito ano de mil oitocentos e quarenta e sete e que se achará anexo ao contrato.

Este gravador mora actualmente = Passage Sante Marie oito. Entrée rue de Grenelle et rue du Bar número cinquenta e oito. Na minha correspondência com o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros se encontram todas as noções históricas relativas a esta célebre carta, da qual El-Rei Dom Afonso quinto mandou fazer uma cópia que se perdeu no reinado de D. Manuel. Convém, pois, que esta que possuo seja restituída a Portugal e desejo que o governo a mande depositar no Real Arquivo da Torre/ 7f. do Tombo.

Artigo décimo segundo

Recomendo que todos os sumários de documentos diplomáticos inéditos que se acham classificados por ordem de potências e estes por reinados e inteiramente prontos para se imprimirem e que formam a obra inteira do Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas das diversas Potências e de Portugal com as mesmas [sic] sejam guardados separadamente dos meus outros papéis e escritos para o fim de que trata-se em outro lugar. Recomendo outrossim que os documentos que se acham já classificados para se imprimirem no tomo segundo do Corpo Diplomático Português, ou Colecção de Tratados sejam igualmente guardados taus quais se acham, a fim de melhor se poderem publicar no caso que o governo continue a fazer dar à luz estas importantes obras nacionais.

Artigo décimo terceiro

Desejo e recomendo igualmente que se juntem a estes preciosos trabalhos, os documentos diplomáticos pertencentes a Portugal, das /7 v. transacções entre Portugal e Inglaterra, que formam um grande maço e que foram copiados no Museu Britânico. Estes documentos acham-se em uma das gavetas do meu Secretário [sic] no meu quarto da cama. Devem juntar-se a estes igualmente os quarenta e três volumes em doze [in 12] escritos pelo meu punho e que encerram preciosíssimos extractos dos documentos e correspondência dos agentes franceses em Portugal desde o reinado de El-Rei D. João quarto até aos nossos dias e que copiei nos Arquivos secretos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França. Esta colecção mostra as notícias históricas mais recônditas e desconhecidas da nossa história e da corte de Portugal, nos dous últimos séculos. Além destes materiais que tenho reunido para estas obras, das quais já existem sete volumes publicados, existem várias cópias e extractos dos livros da legação de Paris que devem igualmente juntar-se à colecção de que acima tratei.

Artigo décimo quarto

Um dos grandes desgostos que tenho tido é que os atrasos da subvenção para a/ 8 f. a publicação destas importantíssimas obras tinham retardado a continuação da aparição sucessiva e simultânea das duas obras, de que tratei e não ultimar em minha vida a mesma publicação. Além do corte de dous contos de réis que a comissão da Fazenda, criada depois da revolução do Minho, de que resultou grande dificuldade para o progresso destas publicações, acresceu o atraso dos pagamentos de que acima trato. A dívida actual do governo da subvenção votada para estas publicações monta a réis (?) seis contos – ou pouco mais ou menos segundo os câmbios a trinta e dois mil francos de moeda francesa. Paris, doze de Junho de mil oitocentos e quarenta e nove = [Assinado] Visconde de Santarém.

Primeiro codicilo

Primeiro = Depois que fiz as disposições que acima deixo determinadas sobrevieram diversos acontecimentos em consequência dos quais cumpre alterar algumas das ditas disposições. O artigo segundo fica revogado e o revogo em consequência de ter deixado esta casa Mr. Miller e ter levado todos os seus móveis e mais objectos/ 8 v. que possuía, pertencendo actualmente todos os móveis, roupas e mais objectos que se acham nos mesmos dois quartos a minha irmã madame Pitoin.

Artigo segundo

Revogo igualmente o artigo oitavo em consequência do que ultimamente obrou para comigo a Academia Real das Ciências [de Lisboa] depois da nova reforma, apossando-se injustamente e sob falsos pretextos da parte da publicação das minhas obras diplomáticas e por cair assim em flagrante contradição com a sanção e aprovação que sempre dera às obras que publiquei.

Artigo Terceiro

Depois da época em que foi feito o meu testamento acima escrito, mandei para o governo quatro mil oitocentos e cinquenta e quatro volumes das obras que tinha em depósito em casa de Mr. Aillaud, conforme declarei no artigo nono e igualmente vinte e seis exemplares do Atlas. Declaro igualmente que todas as folhas do mesmo Atlas que existiam no mesmo depósito, se acham nesta casa e por meu /9 f. falecimento deverão ser restituídas, as que restarem, ao governo, para fazer delas o uso que entender.

Artigo Quarto

Tendo falecido o gravador de que trato no artigo décimo primeiro, com quem havia feito o contrato de que ali trato, propus aos herdeiros um novo contrato, em que consentiram, pelo qual ficou alterado o primeiro e em consequência do que vou mandar ultimar a gravura das duas partes que ainda restam a gravar do mapamundi [sic] de Fra-Mauro. Tudo isto consta dos papéis que a este respeito existem na minha Cartonnière; Advirto que [d]as pedras da parte gravada deste monumento, duas se acham na oficina indicada no artigo undécimo e outra na Silografia [Xilografia] de Lemercier, rue de Seine. Paris cinco de Dezembro de mil oitocentos cinquenta e dois [Assinado] Visconde de Santarém. = Está conforme. O Conselheiro Honorário da Legação Sebastião Carlos Navarro de Andrade.

E para constar onde convier, passou a seguinte certidão, em virtude do despacho/9 v. retro. Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros em dois de Junho de mil oitocentos cinquenta e sete.

                                               Emílio Aquiles Monteverde,

Grátis

(Transcrito a 27 de Novembro de 2020)

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